A Lembrança de Si
P.- A lembrança de si ou a auto-observação são incompatíveis com o desistir e o estar aqui?
R: A lembrança de si é, na verdade, uma técnica muito perigosa. Pode tanto consistir na observação de nós mesmos e de nossos atos, como um gato faminto observa um rato, quanto pode ser um gesto inteligente de estarmos onde estamos. Toda a questão se resume em que, se tivermos alguma ideia de relação - estou vivendo esta experiência, estou fazendo isto - o "eu" e o "isto" são, igualmente, muito fortes.
De uma forma ou de outra, haverá conflito entre "eu" e "isto". É mais ou menos como dizer que "isto" é a mãe, e "eu", o pai. Com a presença destes dois extremos tão polarizados, estamos fadados a dar origem a alguma coisa. Daí que a ideia toda consiste em fazer com que "isto" não esteja presente, pois neste caso "eu" tampouco estará. Ou, então, que "eu" não esteja presente e, portanto, "isto" também não.
Não se trata de nos dizermos isto, mas sim de senti-lo, uma experiência efetiva. Precisamos afastar o observador que vigia os dois extremos. Afastado o observador, a estrutura toda cai por terra.
A dicotomia só subsiste enquanto houver um observador que mantenha o quadro todo em pé. Precisamos remover o observador e a complicadíssima burocracia que ele cria para se certificar de que nada vai escapar ao quartel-general. Afastado o observador, abre-se um espaço enorme, pois ele e a sua burocracia ocupam demasiado lugar. Se eliminarmos o filtro do "eu" e "outro", o espaço torna-se vivo, preciso e inteligente. O espaço contém a precisão incrível de poder trabalhar com as situações nele existentes. Na realidade, não precisamos do "vigia" ou do "observador" para nada.
Chögyam Trungpa Rinpoche
ALÉM DO MATERIALISMO ESPIRITUAL