Delusão: como a mente se engana

Talvez não seja tão necessário entender exatamente o que delusão significa, mas sim perceber operando. 


É possível que achemos que saibamos o que seja, talvez tenhamos um significado pronto para um termo desses, mas tudo isto pode ser contraproducente—nos fixamos ao nosso conceito do que seja e impedimos que aquilo frutifique como prática. Estas palavras são mágicas, e isto num sentido muito profundo. 


Elas não são conceitos exatos, ou verdadeiros, ou técnicos (embora também não deixem de ser estas coisas), o que elas são principalmente é portas para a liberação. Essa palavra "delusão" é um guardião da sua mente, e você precisa se relacionar com ela como se fosse um cachorro feroz, prestes a morder você, mas que você gostaria ter como cão de guarda, a protegendo. Não é possível simplesmente passar a coleira para alguém: vai arrancar pedaços! É preciso que que a pessoa por si mesma faça amizade com ele, entenda seus sinais sutis, tenha por este cachorro uma espécie de devoção misturada com respeito. Então aos poucos o cachorro-delusão pode vir a ser seu protetor—e esse é dos protetores mais furiosos—vence morte, renascimento, sofrimento—qualquer coisa. 


Nomeie e o cachorro-delusão estraçalha. Por isso você não precisa saber como é esse cachorro, que tamanho ele tem, que cor e raça ele é. Você precisa ter este cachorro. Você precisa fazer amizade com ele. Como ele é muito bravo e esquivo, é preciso aproximar-se com cuidado máximo. 


Feita esta advertência, agora creio que não há problema em descrever o cachorro. Apenas espero que ele não nos morda enquanto faço isto! 


Quando ouvimos falar de delusão como a fonte de todos os problemas, imediatamente queremos achar um jeito de acabar com ela. Mas ela é a própria liberdade e a natureza criativa da mente. Em sânscrito, delusão é avidia. Avidia é Prajna (sabedoria) ao avesso. Avidia é o que impede Prajna, Prajna é o reconhecimento do que está além de Avidia, ou a liberdade em meio a avidia. Mas na verdade não são duas coisas, é apenas o mesmo cachorro atacando ou protegendo. 


Delusão tecnicamente é quando olhamos para uma coisa e esquecemos todas as outras. Ou seja, exatamente porque vemos, somos cegos. Exatamente porque um objeto surge, ignoramos todos os outros. Ela é a fonte das tendências cármicas, da identidade, das situações da vida e da morte. 


Quando olhamos uma paisagem pintada num quadro, temos emoções particulares, vemos um rio, árvores, etc. Mas ali há apenas papel e tinta. Esquecemos o papel e a tinta e reconhecemos rio, árvores, etc. Por isso a delusão é algo criativo, não apenas algo aprisionador. 


A delusão tem várias características: separatividade, teimosia, tempo e espaço, identidade, criatividade, cegueira, etc. Assim, como domamos este cachorro? Apenas nos perguntamos "como a mente se engana?" E obtemos uma resposta? 


É como um koan, uma pergunta com o objetivo de colocar a mente num estado tão inescapável que ela precisa transcender a si mesma. Como a mente se engana ao responder este koan? Como se engana ao não responder? Como a mente se engana? 


Se entendermos isto, estamos livres do engano, e o que surge é uma manifestação de criatividade. 


O cachorro é nosso amigo: até lhe damos comida, o levamos para passear e brincamos com ele. Nunca mais vai nos morder, ele sabe que não temos medo, ele tornou-se nosso amigo. Mas será que não vai mesmo? Como a mente se engana? 


Por exemplo, estamos tendo um pesadelo, um gorila está nos devorando. Acordamos gritando, suados. Cadê o gorila? Como a mente se engana?  Perdemos pai e mãe num acidente de automóvel. Como a mente se engana? Temos câncer. Como a mente se engana?  Você tem que dizer algo a seu amigo que perdeu a namorada. Como a mente se engana? 


Se entendemos como a mente se engana, aí podemos verdadeiramente acordar. Mas é preciso mais do que explicar o que é engano e o que é mente, é preciso reconhecer o engano ocorrendo enquanto ocorre e olhar ele nos olhos.

Padma Dorge
Fonte: http://tzal.org/delusao-como-a-mente-se-engana/
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